quarta-feira, 18 de agosto de 2021

"Perdido em Marte", Andy Weir

 Olá, queridos leitores!


Nas últimas semanas assisti à série-documentário Marte, produzida pela National Geographic e estreada em 2016. Eu sempre fui fascinada por assuntos relacionados ao espaço, especulações sobre vida extraterreste e colonização espacial. Todos esses temas são tratados nesta série, que é muito interessante porque alterna documentário com ficção científica. Há duas linhas temporais - 2016, o presente, no qual especialistas falam sobre a tecnologia disponível, sobre as mudanças climáticas na Terra e discutem possibilidades de uma exploração tripulada em Marte; e o futuro 2033, o ano em que a primeira missão tripulada chega a Marte com o intuito de iniciar uma colônia. Eu achei esse assunto tão interessante que voltei minha atenção a um livro que estava na minha estante parado desde 2015: Perdido em Marte, de Andy Weir, publicado pela primeira vez em 2009.


Tripulação na série Mars


Perdido em Marte parte da integrante premissa de um astronauta deixado para trás em Marte. O livro é contado em sua maior parte em primeira pessoa através do diário de bordo de Mark Watney, que conta os seus dias em "sóis". Cada "sol" corresponde ao dia solar marciano que tem duração média de 24 horas, 39 minutos e 35,244 segundos. Portanto, há uma diferença entre o dia solar na Terra e o dia solar em Marte. 


Mark fazia parte da Ares 3, uma missão da Nasa que pretendia permanecer em solo marciano para pesquisas por um mês. Porém, devido a uma intensa tempestade de areia, a tripulação tem que sair às pressas do planeta por temer que a tempestade danificasse o VAM (Veículo de Ascensão de Marte), o que os deixaria presos no planeta vermelho. Durante a confusão da tempestade de areia, Mark é atingido por uma peça de metal e se perde no meio à pouca visibilidade. O seu traje é levemente danificado e seu rádio para de funcionar, o que leva os outros membros da equipe a acreditarem que ele esteja morto. Com pesar, a Capitã Lewis toma a decisão de deixar o corpo de Mark para trás para salvar o restante da tripulação. 


O que eles - e ninguém - não esperavam é que Mark ainda estava vivo e sovreviveu à tempestade de areia. Ele acorda em Sol 6 e escreve em seu diário de bordo: 


"Estou ferrado. Essa é a minha opinião abalizada. Ferrado. Seis dias após o início daqueles que deveriam ser os dois meses mais importantes da minha vida, tudo se tornou um pesadelo. [...] Então, esta é a situação: estou perdido em Marte. Não tenho como me comunicar com a Hermes nem com a Terra. Todos acham que estou morto. Estou em um Hab projetado para durar 31 dias. Se o oxigenador quebrar, vou sufocar. Se o reaproveitador de água quebrar, vou morrer de sede. Se o Hab se romper, vou explodir. Se nada disso acontecer, vou ficar sem alimento e acabar morrendo de fomo. Então, é isso mesmo. Estou ferrado."





Apesar de sua situação devastadora, Mark não perde o senso de humor e atualiza quase que diariamente o seu diário de sobrevivência em Marte. Ele tem que usar do seu conhecimento como astronauta, engenheiro e botânico - e usar muita improvisação e correr riscos - para encontrar uma maneira de permanecer vivo até que possa ser resgatado.


O autor Andy Weir
Enquanto isso, a Nasa fica sabendo que Mark está vivo e o mundo inteiro se comove para ajudar - a quase 1 ano-luz de distância - o astronauta Mark a voltar para casa, vivo. 


O livro começa lento, mas depois acelera de uma maneira que é impossível largar o livro. As entradas do diário de Mark são intercaladas com pequenas narrações em terceira pessoa das equipes da Nase que estão trabalhando noite e dia para encontrar soluções para os problemas de Mark, e da tripulação que deixou o astronauta em Marte, que está a bordo da nave Hermes de volta ao planeta Terra. A tensão de ler esse livro é como a de assistir a um filme, e soube que Perdido em Marte foi, de fato, adaptado para o cinema em 2015, dirigido por Ridley Scott e com Matt Damon no papel principal. Estou louca para assistir a esse filme!




Espero que tenham gostado dessa dica de livro, série e filme.

Uma ótima semana a todos e, é claro, ótimas leituras e ótimas explorações marcianas!


Fernanda

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

"Passagem para Pontefract", Jean Plaidy

 Olá, queridos leitores!


No post de hoje eu compartilho com vocês uma das minhas mais recentes leituras. Trata-se do décimo volume da saga Plantageneta, escrita pela britânica Jean Plaidy (um dos pseudônimos de Eleanor Burford Hibbert), que acompanha os reis e rainhas da Inglaterra desde Henrique II no século XII, até o final da dinastia com o desfecho da Guerra das Rosas (1455-1487), que deu início à dinastia Tudor com Henrique VII no século XV.

Tem vídeo no canal sobre essa saga. Assista aqui: SAGA PLANTAGENETA de Jean Plaidy - Luta pelo poder na Idade Média - YouTube

Eu já venho acompanhando esta série de livros desde 2015 e leio, em média, um ou dois livros desta saga por ano. Plaidy mistura fato e ficção, criando personalidades e diálogos para personagens históricos. O trabalho da escritora foi feito com base em muita pesquisa histórica, então aprendi muito sobre a história da Inglaterra através destes livros. 

Eu tinha grandes expectativas para o décimo volume, Passagem para Pontefract, publicado originalmente em 1981. Isso porque, além de gostar muito do trabalho da autora, este livro acompanha o reinado de Ricardo II (1367-1400), o rei que estudo nas minhas pesquisas de doutorado. Estou escrevendo sobre três produções da peça Ricardo II de Shakespeare na Londres do século XIX. Portanto, tinha bastante curiosidade em ler como Plaidy descreveria os acontecimentos que Shakespeare dramatiza na sua peça.

No entanto, me decepcionei, porque Ricardo não é o personagem principal deste livro, de fato. O livro inicia com o rei Eduardo III ainda vivo. Eduardo foi o protagonista do último volume, O Juramento do Rei - para ler a resenha deste livro, clique aqui. Portanto, Plaidy volta no tempo e reconta eventos que já tinham sido descritos no último volume: o caso amoroso adúltero do rei com Alice Perrers, o casamento do Príncipe Negro com Joana de Kent, a morte do seu filho mais velho - o herdeiro Henrique, a morte do Príncipe Negro e a morte do próprio Eduardo III, que deixa o trono para o seu neto de dez anos, Ricardo. Tudo isso toma um bom terço do livro todo. 


Eduardo III

Ricardo II


O segundo terço do livro tem como personagem principal João de Gaunt, um dos filhos sobreviventes de Eduardo III. Portanto, irmão do Príncipe Negro e tio de Ricardo II. João é um homem muito ambicioso e ressente estar tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe da coroa. Ele queria muito se tornar rei e despreza o fato de que o trono deve ser ocupado por uma criança. No início do livro, eu até simpatizei com João, que era muito apaixonado por sua primeira esposa, Blanche. Porém, depois da morte prematura dela em decorrência da peste, João se apaixona facilmente por outras mulheres e quer a todo custo se tornar rei, da Inglaterra ou de qualquer outro lugar. Ele não era bem-quisto pelo povo, que, até então, simpatizara com o jovem Ricardo.

John de Gaunt

Durante todo o livro Ricardo é ofuscado por outros personagens, que tentam manipulá-lo, como seu tio Gaunt no segundo terço do livro, e seu tio Thomas de Woodstock, no terceiro terço da obra. A relação de Ricardo com o seu favorito Robert de Vere foi muito pouco explorada, na minha opinião. E o evento que inicia a peça de Shakespeare - a disputa entre Henrique de Bolingbroke e Thomas Mowbray - só aparece na página 406 (de 444 páginas). A parte mais interessante do reinado de Ricardo - o descontentamento popular por causa de sua relação com seus favoritos e o conflito com Bolingbroke, que usurparia a coroa para se tornar Henrique IV - é contada muito rapidamente e sem muitos detalhes, como se a autora já tivesse ultrapassado o número máximo de palavras e tivesse que encerrar às pressas.


Outra coisa que me chamou atenção foi a maneira como a morte de Ricardo II foi reconstruída. Não há consenso entre historiadores com relação à causa da sua morte. Shakespeare a coloca como assassinato, dramatizando Sir Exton - a mando indireto de Bolingbroke - atacando o rei deposto na sua cela de prisão. Plaidy escolhe outro caminho: o seu Ricardo II morre de fome deliberada. O rei se recusa a comer e prefere morrer a passar o resto dos seus dias na prisão, temendo uma morte cruel.


Peça de Shakespeare


O livro termina da seguinte forma:


"O vento uivava, como se em homenagem a uma alma atormentada.

'Não pode demorar agora', pensou Thomas Swynford. 'Hoje... amanhã... mandarei a notícia ao rei.'

Na ponta dos pés, aproximou-se do catre. Ali estava ele, o outrora bonito rei, o orgulhoso Plantageneta.

O último desejo de Ricardo de Bordeaux tinha sido satisfeito.

Ele estava morto, e o trono estava garantido para Henrique de Bolingbroke." (p. 444)


Jean Plaidy
É aí que se inicia o décimo-primeiro volume da saga, que acompanha Henrique IV. Infelizmente, a editora BestBolso só traduziu e editou a saga até o décimo volume. Os quatro últimos livros não foram lançados, não sei o porquê. Vou ler o próximo, The Star of Lancaster, no idioma original em inglês.

Espero que tenham gostado dessa resenha. Logo, logo sairá o vídeo no canal. Acompanhem aqui: "O Prazer da Literatura".

Uma ótima semana a todos e, é claro, ótimas leituras!


Fernanda

terça-feira, 29 de junho de 2021

"O Sol é para Todos", Harper Lee

 Olá, pessoal!


Hoje venho compartilhar com vocês a minha mais recente leitura. Trata-se de O Sol é para Todos, ou, no original em inglês, To Kill a Mockingbird, da norte-americana Harper Lee (1926-2016). O livro se passa no sul dos Estados Unidos nos anos 1930, mas foi escrito e publicado em 1960. Ele recebeu o Prêmio Puitzer de Literatura em 1961 e hoje é considerado um dos grandes clássicos da literatura norte-americana, apesar de ter recebido comentários tanto positivos quanto negativos.


Eu tive um experiência muito emotiva com este livro. Acredito que um dos principais motivos é porque ele é contado através de uma criança, Jean-Louise Finch, também chamada pelo apelido Scout, que no início da narrativa tem 6 anos de idade. Ela vive na cidade fictícia Maycomb, em Alabama, com seu irmão mais velho, Jeremy - ou Jem - e seu pai Atticus Finch, um advogado. A mãe das crianças morrera quando Scout era ainda muito nova, tanto que ela mal se lembra do rosto ou da voz de sua mãe. Jem, no entanto, sente mais falta da figura materna. Atticus é um bom pai, mais velho do que a maioria dos pais dos amigos das crianças, e bastante franco com seus filhos. Eles conhecem a profissão do pai e fazem diversos questionamentos sobre os processos da lei.

Jem, Scout e Dill no filme de 1962

Quando a narrativa se inicia, em 1933, os Estados Unidos estavam passando por uma grande depressão econômica, que se iniciou com a queda da bolsa de Nova York em 1929 e durou até o final da Segunda Guerra Mundial. Como consequência, houve grandes taxas de desemprego, queda na produção industrial e um declínio de preço de ações. Esses efeitos negativos chegaram ao ápice em 1933, quando o presidente Franklin Roosevelt aprovou o chamado New Deal, uma série de medidas e políticas para recuperar e reformar a economia dos EUA, como investimento maciço em obras públicas, que geraram novos empregos; destruição dos estoques agrícolas para que os preços não caíssem, evitando a superprodução; a diminuição da jornada de trabalho e o estabelecimento do salário mínimo

Maycomb é uma cidade pequena, onde todos se conhecem e conhecem a reputação de sua família. É muito interessante ler a descrição dos lugares e personagens através da perspectiva de uma menina de 6 anos, que não entende certas convenções sociais, especialmente comportamentos dissimulados e hipócritas. Um dos moradores da rua que mais causa fascinação - e medo - nas crianças é o recluso Arthur 'Boo' Radley, um homem que havia entrado em confusões e brigas quando mais jovem, e depois disso nunca mais saiu de sua residência. Scout e Jem, juntos de seu amigo Dill, que passa os verões em Maycomb, deixam a sua imaginação correr solta e criam planos para fazer 'Boo' aparecer. 

Um grande evento na cidade de Maycomb e principal evento na narrativa é o julgamento de Tom Robinson, um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca. O pai das crianças, Atticus, é colocado como advogado de defesa de Robinson, o que causa certos moradores (e até mesmo crianças) a criticarem a família Finch. Apesar da década de 1930 já ter testemunhado o final da Guerra Civil Americana e passado pelo período de abolição da escravatura e Reconstrução, certas parcelas da socidade ainda mantinham uma visão de mundo extremamente racista, como representado em O Sol é para Todos. Pelo fato de ser negro, Robinson é automaticamente considerado culpado, pois sua palavra, apesar de que honesta, não era acatada quando divergente da voz de uma mulher branca. 

Atticus e Tom no filme de 1962

Atticus acredita na inocência de Tom Robinson e usa de todos os seus poderes para livrá-lo da pena de morte. Scout, Jem e Dill aparecem no tribunal para assistir ao julgamento de Tom, que despertou o interesse da cidade toda. As crianças ouviram os depoimentos, a fala de Atticus em defesa de Robinson, a declaração da mulher Mayella Ewell e de seu pai. Elas estavam confiantes de que Tom Robinson sairia inocentado, porque não havia provas definitivas para condená-lo. Pelo contrário, estava evidente que Tom era inocente. Porém, quando a votação vai para o júri popular, Tom é condenado por unanimidade. As crianças, assistindo de longe, se sentem nauseadas, desacreditando o comportamento das pessoas de Maycomb, que pareciam a elas serem pessoas boas. Enquanto alguns moradores da cidade se achavam pessoas benevolentes, comentavam com pesar sobre a vida de crianças pobres em outros países e sobre as atrocidades de Hitler na Alemanha, eles não pareciam se aperceber da injustiça terrível que cometiam em seu próprio país.


Apesar de ter sido criticado por ser um livro que usa termos racias ofensivos, eu acredito que a história de Harper Lee condena o racismo e a intolerância. Além do mais, Lee enfatiza que o pensamento de uma criança é puro e inocente, mas corrompido pelos preconceitos da sociedade. Neste caso, Scout e Jem passam por um período de melancolia depois do julgamento de Tom Robinson e desanimados com o ser humano. É nesse momento que eles, dolorosamente, deixam a infância para trás para se tornarem adultos.


A autora Harper Lee nasceu em uma cidade do Alabama em 1926, assim como os personagens de O Sol é para Todos. Alguns dos acontecimentos da narrativa são baseados em eventos que ela presenciou quando criança. O pai de Harper, Amasa Coleman Lee, também foi um advogado e, certamente, uma inspiração para o personagem Atticus. Em 1919, Amasa defendeu dois homens negros contra uma acusação de assassinato. No entanto, eles foram considerados culpados, enforcados e seus corpos mutilados. Depois dessa ocorrência, o pai de Harper nunca mais aceitou defender outro caso. Lee também tinha um irmão mais novo, Edwin, que pode ter servido de inspiração para o personagem Jem. Uma curiosidade é que Harper baseou o personagem Dill no seu amigo e também escritor Truman Capote (1924-1984), autor de Bonequinha de Luxo (1958).

Harper Lee

Em 2015, a editora Harper Collins publicou Go Set a Watchman, traduzido para  Vá, Coloque um Vigia, o único outro livro escrito por Lee. Apesar de ter sido divulgado como uma continuação de O Sol é para Todos, o texto é, na verdade, baseado em um rascunho antigo do primeiro livro da autora. No entanto, já coloquei esse título na minha lista de leituras. E vocês? Já leram algo de Harper Lee?


Espero que tenham gostado dessa sugestão de leitura.

Uma ótima semana a todos e, é claro, ótimas leituras!

Fernanda


segunda-feira, 24 de maio de 2021

" O Silêncio das Mulheres", Pat Barker

 Olá, queridos leitores!


Hoje estou aqui para compartilhar com vocês a minha mais recente leitura: O Silêncio das Mulheres (2018), da escritora britânica Pat Barker. Trata-se de uma releitura de Ilíada, o grande clássico da literatura da Grécia Antiga, atribuído ao poeta Homero (928 a.C.-898 a.C.), porém através da perspectiva de uma mulher, normalmente relegada a uma nota de rodapé nos livros de história, a Rainha Briseis.


O título do livro faz referência ao silêncio forçado a tantas mulheres durante a Guerra de Tróia, que eram trocadas ou vendidas como mercadoria ou espólios de guerra. É uma abordagem muito interessante, pois confere voz e agência ao lado dos oprimidos e conquistados. Estamos acostumados a ler sobre os heróis gregos, como Aquiles, Agamenon, Pátroclo e Odisseu. Os contos de mitologia grega engrandecem e idealizam os feitos desses homens. Mas, que tipo de ser humano eles eram? Como eles se comportavam fora dos campos de batalha? E como se relacionavam com as pessoas ao seu redor, amigos e inimigos? E, mais importante para este livro, como eles tratavam as mulheres ao seu redor? Pat Barker reconstrói esse cenário que mistura história, mitologia e ficção, desmistificando a grandeza heróica que envolve esses personagens, representando-os como homens bárbaros, cruéis, levados por ego a certas decisões de bataha que têm grandes consequências, e como homens que usam as mulheres capturadas durantes os cercos a cidades inimigas como meros objetos, ofuscando as suas identidades, transformando-as em escravas.


A rendição de Briseis por Aquiles a Agamenon, afresco, século I dC, agora no Museu Nacional de Arqueologia de Nápoles

Briseis era rainha na cidade grega de Lirnesso. No início do livro, a cidade está cercada pelo exército do temido Aquiles, que solta seu grito de guerra, apavorando as mulheres que estão se escondendo dentro das muralhas da cidade, pois elas sabem muito bem o que aconteceria com elas caso a cidade caísse. E, de fato, a cidade sucumbiu. Todos os homens, independente da idade, foram mortos, as mulheres grávidas foram todas mortas pelo caso de estarem esperando um filho homem, e todas as outras mulheres foram levadas ao exército grego para serem distribuídas como escravas. Briseis viu seu marido e seus irmãos serem assassinados por Aquiles. Como era uma mulher de alto escalão, Briseis foi levada como escrava particular de Aquiles. Portanto, ela foi obrigada a compartilhar a cama daquele que havia dizimado a sua família - um destino que muitas mulheres tiveram que enfrentar.


A queda de Troia Johann Georg Trautmann (1713–1769)

A partir desse momento, Briseis tem que viver no acampamento inimigo e servir aos soldados, cumprindo qualquer ordem que Aquiles determinasse. Seu único consolo são os poucos momentos em que consegue estar na companhia de outras mulheres. Assim, juntas, elas confortam uma a outra como possível. O acampamento está cercando Tróia, governada pelo Rei Príamo, pai de Páris, que - segundo a mitologia - havia raptado Helena, esposa de Menelau, iniciando a Guerra de Tróia. O interessante é que, apesar de Helena ser um grande nome nas lendas e baladas da Grécia Antiga, ela é apenas uma sombra em O Silêncio das Mulheres, apenas uma silhueta vista à distância por Briseis do acampamento inimigo. 


A narrativa é contada na sua maior parte em primeira pessoa por Briseis, que, dessa forma, tem a chance de contar a sua versão da história, negada nos relatos tradicionais. Porém, há capítulos em que o leitor tem acesso à narrativa de Aquiles, em terceira pessoa. O que me parece é que, apesar de Briseis tentar contestar a sua posição de silêncio na história, a narrativa masculina ainda interfere e influencia a sua. Essa decisão da autora me incomodou um pouco, porque parece contradizer a proposta do livro. 

Pat Barker
Outro ponto do livro que também me incomou foi a linguagem demasiada informal e moderna em certos momentos, incongruente com o momento em que a história se passa, a Grécia Antiga. Eu entendo que a autora tenha querido aproximar o leitor moderno da história de Briseis, mas, na minha opinião, o resultado me pareceu incoerente. Além disso, o início e o final do livro são bem dinâmicos, enquanto o meio tem um ritmo mais lento. 


De qualquer maneira, a leitura foi positiva. Fico feliz por ter lido essa história de agência feminina e de reimiginação da história, desmistificando o ideal do herói grego. Também fiquei interessada em saber mais sobre a Guerra de Tróia e em ler os épicos homéricos Ilíada e Odisséia, os clássicos que dão base ao livro de Barker e de tantos outros. De fato, leitura obrigatória para melhor compreender a produção cultural sobre a Grécia Antiga.


Espero que tenham gostado dessa sugestão de livro!

Uma ótima semana a todos e, é claro, ótimas leituras!

Fernanda



domingo, 25 de abril de 2021

"Manfield Park", Jane Austen

 Olá, queridos leitores!


Hoje venho compartilhar com vocês a minha mais recente leitura: Mansfield Park (1814), de Jane Austen. Austen está entre as minhas autoras preferidas, e há tempo venho me familiarizando com a sua obra. Dos seus seis romances completos, li quatro: Razão e Sensibilidade (1811), Orgulho e Preconceito (1813), Emma (1815) e Northanger Abbey (escrito em 1803, mas publicado postumamente em1818). Desta vez, li Mansfield Park, o romance mais longo e - na minha opinião - mais sóbrio de Jane Austen.


Diferente das heroínas dos primeiros livros de Austen (Marianne Dashwood, Elizabeth Bennet e Catherine Morland), a protagonista de Mansfield Park, Fanny Price, é uma jovem quieta, tímida e passiva - ela tem pouca ou nenhuma agência sobre as suas ações e comportamento, alegrando-se ou sofrendo em silêncio. Fanny é a filha mais velha da família Price. Sua mãe casou-se abaixo da sua condição social e, devido ao número de filhos e despesas, sofre com seu marido para manter a casa. A Sra. Price tem duas irmãs, Sra. Norris e Lady Bertram, que vivem uma situação melhor devido as suas escolhas de casamento. Lady Bertram é casada com Sir Bertram, tem quatro filhos (Thomas, Edmund, Maria e Julia) e mora na majestosa Mansfield Park. Como uma maneira de auxiliar a sua irmã, Lady Bertram convida Fanny a morar em Mansfield Park, que se torna uma companheira e ajudante de sua tia. Fanny tinha apenas 10 anos quando se mudou, deixando a simplicidade do seu lar para trás e aprendendo a viver em um mundo de boas maneiras e luxo. Sua natureza humilde e honesta não a deixa esquecer suas origens, no entanto, sendo muito grata aos seus tios pela oportunidade que lhe ofereceram de uma educação superior. 

Fanny sewing (artist C E Brock, 1908)


Os anos se passam e Fanny já é uma jovem mulher. Seus primos praticamente a ignoram, deixando-a em seus cômodos - cuja lareira estava sempre sem lenha para não acostumá-la com o luxo incompatível com sua proveniência. Quem se certificava de que Fanny não recebia nenhum agrado dispensável era sua terrível tia Norris, uma viúva que se gabava de viver sempre em economia. A única pessoa em Mansfield Park que dava atenção a Fanny era seu primo Edmund, por quem Fanny secretamente desenvolveu sentimentos amorosos - mesmo que ele apenas a enxergasse como uma irmã.


Um dia, durante a ausência do Sir Bertram, que estava cuidando de seus negócios em Antígua, a família recebeu a visita de novos vizinhos: os jovens irmãos Mary e Henry Crawford, vindos de Londres. Eles trouxeram consigo a energia e criatividade da cidade, que contrastava com a pacatez de Mansfield. Tom, Maria e Julia logo se animaram com a presença dessas figuras e foram convencidos a montar uma peça de teatro. Esta parte do romance é muito interessante, pois ilustra bem a maneira como os Crawford desestabilizam a harmonia da casa, trazendo caos e agitação aos moradores. Participar de uma peça teatral e atuar - principalemente em uma peça de amor, como eles queriam - era considerado imoral pelos mais conservadores. Edmund e Fanny foram contra, sabendo que Sir Thomas desaprovaria a atividade. Contudo, Edmund, mais e mais cativado pela beleza e simpatia de Mary Crawford (o completo oposto de Fanny), se deixa levar e se une ao projeto. Fanny fica chocada como o galante Henry Crawford flerta abertamente com suas primas, mesmo sabendo que uma delas estava prometida ao Sr. Rushworth. Mansfield Park vira de pernas para o ar enquanto os jovens a transformam em um enorme palco, até que a volta repentina de Sir Bertram põe um fim ao espetáculo. 

Mary Crawford


Fanny Price e Henry Crawford
Porém, a harmonia de Mansfield Park se quebrou e a teatricalidade da atmosfera teatral improvisada tomou conta da vida e relações amorosas dos moradores e visitantes. Depois da oportunidade de atuar diferentes papéis e de refletir, mesmo que inconscientemente, sobre diferentes possibilidades, ninguém é mais o mesmo - com exceção de Fanny, que permanece resoluta em seus princípios morais. Sir Bertram percebe o valor de sua sobrinha e a faz se sentir mais e mais um membro da família e residente de Mansfield Park. 


O poder de Fanny é o poder da estabilidade - enquanto os outros personagens se perdem em conflitos de amor, casamentos infelizes e fugas irracionais, Fanny permanece correta e humilde. Sua paciência é testada quando o galanteador Henry Crawford quer fazê-la apaixonar-se por ele e Mary Crawford se aproxima mais e mais do seu amado Edmund. Apesar de não ser vivaz e espirituosa como Elizabeth Bennet ou Emma Woodhouse, Fanny Price consegue sua recompensa por se manter fiel a seus padrões morais e a sua família em Mansfield Park.


Eu devo confessar que a leitura desse livro foi um tanto quanto arrastada, bem diferente dos outros livros de Austen que eu li. Os parágrafos são longos e há poucos diálogos. O enredo fica mais empolgante durante as preparações para a peça teatral e no final do livro, quando há uma intensa troca de cartas entre Fanny e outros personagens. Porém, no restante do romance, o leitor chega a ficar incomodado com os princípios inabaláveis de Fanny e sua falta de energia ou criatividade, que prefere a quietude e imobilidade do campo à mutação e novidade da cidade, personificados por Mary e Henry.



Jane Austen
O editor de Manfield Park da Penguin English Library, Tonny Tanner, afirma que esse livro foi escrito em uma fase diferente da vida da autora. Depois de se mudar da casa onde nasceu após a morte do seu pai e de ter sofrido uma desilusão no amor após a morte repentina de um pretendente, Jane Austen se tornou mais sóbria, tem uma relação menos idealizada com o amor e, ao ver o seu país mudando drasticamente com a revolução industrial, reflete sobre a influência dos vícios do ambiente urbano na moral humana.

Espero que vocês tenham gostado dessa dica de leitura.


Uma ótima semana a todos e, é claro, ótimas leituras!


Fernanda


quinta-feira, 11 de março de 2021

"O Despertar", Kate Chopin

Olá, queridos leitores! 

 Hoje gostaria de compartilhar com vocês minha leitura do romance O Despertar (1899), de Kate Chopin (1850-1904). Chopin foi uma escritora norte-americana de final do século XIX. Ela nasceu em Missouri, no sul dos Estados Unidos, filha de um imigrante irlandês. Seu pai morreu cedo em um acidente de trem quando ela tinha apenas 5 anos. Portanto, Kate passou grande parte de sua vida rodeada por mulheres viúvas e independentes - sua mãe e sua avó. Mal sabia ela que o mesmo aconteceria com ela. 

Kate Chopin
Aos 19 anos, ela se casou com Oscar Chopin e se mudou para Nova Orléans, uma cidade efervescente e de cultura francesa e espanhola, resquícios do período de colonização. Eles tiveram seis filhos juntos. Porém, em 1883, quando Kate tinha apenas 33 anos, seu marido morreu, e ela voltou ao Missouri com suas crianças para morar com sua mãe e avó. Portanto, não é à toa que suas histórias focam nas experiências femininas, principalmente relacionadas com as tensões entre o desejo erótico feminino e as limitações da sociedade, desafiando um padrão de vida patriarcal, que restringia todos os aspectos da vida feminina na época.

  Chopin deixou Nova Orléans para trás, mas a cena cultural de Louisiana nunca deixou seus pensamentos. Quando voltou para seu estado natal, Kate se voltou para suas experiências na costa sul norte-americana e iniciou sua carreira como escritora. Chopin fez parte do movimento regionalista da literatura do final do século XIX, que buscou retratar diferentes faces dos Estados Unidos. Apesar de serem um país, reconstruído após a Guerra Civil, não havia uma cultura homogênea. Pelo contrário, os autores desse movimento se propuseram a mostrar aos leitores de outros cantos do país as idiossincrasias do seu lugar: cultura, língua, diversas formas de falar, diferentes paisagens, etc. Eu fiquei apaixonada pelo estilo de escrita de Chopin. 

Em O Despertar, o leitor é levado para a ilha Grand Isle, onde um grupo de personagens da classe alta de Nova Orléans passa o verão. A protagonista é Edna Pontellier, uma mulher jovem vinda da cultura de plantação sulista, casada com o Sr. Léonce Pontellier e levada para o ambiente sofistificado e liberal da cidade - uma situação muito parecida com a da própria Kate Chopin. Durante esse verão, Edna passa por uma transformação. Ela percebe certos sentimentos crescerem dentro de si quando na presença do jovem Robert Lebrun, que é um galeanteador que a paparica. Tudo começa como uma brincadeira, mas os sentimentos passam a ser verdadeiros. De pouco em pouco, Edna percebe como se sente presa no seu casamento: não ama Léonce e, apesar de amar seus filhos, não se identifica no papel de mãe. 

O contato com as sensações do verão - a calmaria, a preguiça, o sussurro da brisa, as ondas envolvente do mar -, com a música tocada por Mademoiselle Reisz e o contato com o libertino Alcée Arobin de volta a Nova Orléans, a faz querer mais. Ela aos poucos se desperta para a vida e para os seus desejos mais íntimos, que a sociedade condena. Daí o título do livro, O Despertar

  Esse livro foi um escândalo quando publicado, foi considerado vulgar e amoral na época. Depois deste romance, nenhum outro trabalho de Chopin foi aceito para publicação e sua promissora carreira literária chegou ao fim. Foi apenas na década de 1970, com a segunda onda do feminismo, que as suas obras foram resgatadas e colocadas no cânone da literatura norte-americana. Já escrevi sobre Chopin em duas outras ocasiões aqui no blog. Para reler essas postagens, clique aqui

  Chopin morreu aos 54 anos depois de sofrer uma hemorragia cerebral. 

 Espero que vocês tenham gostado de saber mais sobre essa autora norte-americana do século XIX, que desafiou a cultural patriarcal ao criar uma personagem feminina moderna, livre e que não se conformava com o papel de esposa e mãe.
Um grande abraço a todos e, é claro, ótimas leituras! 

 Fernanda

quinta-feira, 4 de março de 2021

"A Glória de um Covarde", Stephen Crane

Olá, pessoal! Hoje vou compartilhar com vocês minhas impressões sobre o livro A Glória de um Covarde, do norte-americano Stephen Crane (1871-1900). Este é um dos tantos livros sobre a Guerra Civil Americana, mas uma perspectiva diferente do que havia sido escrito até então. Publicado pela primeira vez de maneira serializada em uma revista literária em dezembro de 1894, o texto saiu em formato de livro no ano seguinte, e estabeleceu Crane como grande nome da produção literária americana da época. Crane nasceu em 1871, ou seja, seis anos após a guerra ter terminado. No entanto, a sua descrição psicológica das angústias de um soldado levou vários leitores a acreditarem que ele era um veterano de guerra. Ele afirmou para uma revista que nunca havia nem sentido cheiro de pólvora.
Quando o livro saiu, ele recebeu duras críticas de veteranos militares, que acreditavam que Crane havia ofendido os heróis de guerra ao tratar de temas como covardia e inutilidade da guerra. O protagonista dessa história é Henry Fleming, um jovem americano que, motivado pelas promessas de glória reservada aos heróis de batalhas, alista-se para o exército da União. No período da Guerra Civil (1861-1865), o país se dividiu em dois: o Norte, a União, industrializado e abolicionista, e o Sul, a Confederação, agrário e escravocrata. Fleming vai à guerra e faz parte do ficcional 304 regimento de Nova York. Ele se refere a outros soldados como o "soldado alto", "o soldado barulhento", o "soldado velho", etc. É uma maneira de Crane afirmar que estes homens poderiam ser qualquer pessoa.
O livro traz uma perspectiva muito interessante sobre a guerra. A narrativa é contada em terceira pessoa, mas através do ponto de vista de Henry. Por vezes, o leitor tem acesso a seus mais íntimos pensamentos, e, outras vezes, o observa de fora. Henry tinha uma visão muito idealizada da guerra, baseada em batalhas da Grécia Antiga. Ao se deparar com a realidade do campo de batalha, ele percebe que os momentos de glória são raríssimos. Em contrapartida, há fome, cansaço, muito deslocamento sem objetivo aparente, cumprimento de ordens sem saber o motivo pelos quais as cumpre... enfim, ele se sente "um gato jogado em uma bolsa". Um momento definitivo no livro é quando Henry percebe que sua primeira batalha e, consequentemente, seu primeiro contato com a morte, está próximo. Ele se pergunta: Como meu corpo reagirá à aproximação do inimigo? Terei coragem ou irei fugir? Serei um covarde? É muito interessante ler o que se passa na cabeça do jovem soldado, que reage ambiguamente à situação em que se encontra: ora, ele quer provar o seu valor; ora, ele se pergunta o que está fazendo ali e qual o objetivo de tanta morte?
Ele quer se colocar à prova o mais rápido possível, porque ele não aguenta o prolongamento do seu sofrimento. Porém, o regimento se arrasta por milhas até finalmente enfrentarem o inimigo. Henry quer exibir um emblema vermelho da guerra, que seria um ferimento aparente - a prova de sua coragem. Ele chega até mesmo a invejar os soldados feridos, pois ele não têm mais que se preocupar em comprovar a sua coragem. Este, aliás, é o título do livro no original: The Red Badge of Courage. Este título incrementa a ironia de ter um emblema vermelho de coragem devido à maneira como Henry consegue o seu. Cabe a você, leitor, descobrir. Esta foi uma leitura que me impactou bastante. Temos acesso a diversas narrativas (literárias ou cinematográficas) grandiosas de guerra, que exaltam o herói como alguém perfeito e auto-confiante. A Glória de um Covarde apresenta o lado mais humano, opressor e realista da guerra. E é incrível como Crane, mesmo nunca tendo participado de uma batalha, conseguiu captar os tormentos internos do protagonista.
Crane foi um autor prolífico, mas que, devido ao seu estilo de vida boêmio, morreu cedo. Ele foi um grande nome do Naturalismo Americano e escreveu diversos contos que aparecem em Antologias de Melhores Contos Norte-Americanos. Aqui no blog já escrevi sobre "A Noiva Chega a Yellow Sky". Para (re)ler este post, clique aqui. Espero que tenham gostado dessa sugestão de leitura. Uma ótima semana a todos e, é claro, ótimas leituras! Fernanda